"Faço filmes porque não sou ativista"

 

A obra completa do cineasta viciado em imagens de arquivo está em retrospetiva na secção Silvestre do IndieLisboa.

Isso de se ser ativista é outra coisa, é ir ao encontro das pessoas, do mundo real. Fazer filmes, mesmo que políticos, como são os seus - no sentido em que até um filme sobre intimidade pode ser político - é criar uma proteção, assim pensa Jean-Gabriel Périot, muitas vezes descrito como cineasta de arquivo pelo recurso quase obsessivo a imagens de arquivo ou found footage nos seus trabalhos, que vão já em 28 curtas-metragens e uma longa, "Une Jeunesse Allemande", na competição internacional na edição do ano passado do IndieLisboa. Festival que o coloca este ano como cineasta em destaque na secção Silvestre. com uma retrospetiva à sua obra, que é muito mais do que cinema de arquivo. Ao lado de filmes sobre a discriminação dos negros nos EUA ("The Devil") ou a importação de tomate ("#67") há ensaios e diários fílmicos como "Journal Intime" ou "Lovers", um filme pornográfico. Em comum entre tudo isto, explicou-nos numa conversa no Cinema São Jorge (onde hoje às 18h45 são exibidas 13 das suas curtas e amanhã "Une Jeunesse Allemande"), está o questionamento, um caráter quase propagandístico ("considero os meus filmes filmes de propaganda", diz) e o ser humano. Sempre frágil, no passado e no presente, que afinal são sempre o mesmo.

 

De onde vem esta sua necessidade de trazer o passado para o presente?

Se me recordo bem, já foi há uns anos, fiz o meu primeiro filme ("Parades Amoureuses") sobre o presente, o contexto político contemporâneo, e a certa altura comecei a sentir lacunas no meu conhecimento sobre o passado histórico, a precisar de alguma informação para compreender o que estava a acontecer. Comecei a ler para tentar compreender o que estava a acontecer hoje e isso começou a tornar-se cada vez mais interessante, encontrei algumas histórias ou imagens que queria recuperar e comecei a fazer filmes sobre acontecimentos históricos. Mas veio tudo da falta de conhecimento. Eu não era muito bom a História na escola, na verdade não gostava. Na minha família ninguém me ensinou História nem era hábito irmos a museus ou a esse tipo de lugares.

 

Como é que se tornou artista então?

Tive a sorte de por acaso ir muito ao cinema desde criança. O meu pai tomava conta de mim e todas as semanas me levava a ver um filme da Disney. Punha-me lá por duas horas e tinha duas horas de liberdade para ele. E em adolescente os meus pais começaram a deixar-me ir sozinho ao cinema, tipo todas as semanas ou duas vezes por semana podia apanhar o autocarro sozinho para ir ao cinema. Fui muito ao cinema nessa altura. [Mais tarde] fui para a universidade estudar comunicação visual e comecei a trabalhar como editor. E acho que comecei a fazer filmes porque via muitos filmes, muitas exposições, todo o tipo de arte, estava fascinado com o movimento avant-garde, no cinema e na arte, desde o início do século a meados dos anos 1960 e 70, mas não havia muitos trabalhos políticos contemporâneos. Estava sempre a queixar-me, "temos de fazer filmes como se fazia nos anos 70, mas hoje", e houve um dia em que deixei de me queixar e comecei a fazê-los.

 

Considera-se um ativista?

Não. Faço filmes porque não sou ativista. Sinto-me algo desconfortável com o verdadeiro ativismo, vou a manifestações as não pertenço a nenhum partido ou organização, sinto-me algo desconfortável no campo do verdadeiro ativismo. O meu lugar é fazer filmes. É uma coisa um bocado burguesa.

 

Mas é impossível não olhar para boa parte dos seus filmes como filmes políticos.

Sim, crio algumas ferramentas que partilho com as pessoas. Acho que precisamos de filmes políticos, são úteis. Mas quando és ativista tens que ir ter com as pessoas, com a vida real, e para mim, os filmes, são uma proteção, uma forma de ficar no meu lugar, mesmo que depois possam ser lidos como estritamente políticos.

 

De qualquer modo o seu trabalho não termina aí. Há ensaios, outro lado mais pessoal, diários como "Journal Intime". O que é que une tudo isto?

Há uma coisa que os une, acho: mesmo que não sejam estritamente políticos, há sempre um lado de questionamento. Seja sobre género, sobre intimidade, mesmo que isso não seja tão claro, que seja uma linguagem diferente e menos óbvia...

 

... são uma forma de falar de política.

Sim. Há algumas exceções como "Lovers" ou "Journal Intime", que são mais experimentais. No "Lovers" há um questionar da forma, da pornografia, mas estes filmes não dizem nada, são apenas ensaios. E são exceções.

 

O que o levou a explorar o campo da pornografia?

Foi uma coincidência. Esses foram filmes comissariados, o que muda um pouco as coisas. No Canal + da televisão francesa havia um programa chamado "Gay Night" que todos os anos passava um filme encomendado a um artista sobre pornografia, a ideia era encontrar formas de falar sobre a pornografia. E fiz esses filmes. A pornografia não é uma coisa que me interesse muito, não sei o que pensar sobre a pornografia, se é bom ou mau, mas havia qualquer coisa sobre o corpo que me levantava algumas questões.

 

Todo o seu trabalho parte de alguma forma de questionamento?

Os meus filmes são sempre sobre coisas que eu não entendo. Às vezes pega-se num livro ou num jornal e encontra-se uma informação que muda o nosso pensamento. Eu preciso de ir além dos meus clichés e isso muitas vezes começa assim, por coisas que descubro e preciso de explorar, de questionar, para depois dar à audiência, não o que eu descobri mas essa questão que eu tive desde o início.

 

Acontece mudar o que pensa sobre um assunto depois de fazer um filme?

Não, normalmente fico com mais certezas da minha questão. Por exemplo, quando fiz o "200000 Phantoms" [2007] não sabia nada sobre Hiroxima. Li um livro e fiquei impressionado por saber tão pouco. Passei um ano a ler coisas sobre Hiroxima, como se estivesse a fazer uma tese, e no final continuava com a mesma questão: como é que uma coisa destas pode acontecer? Por que temos tão pouca memória disto? Estas questões estão sempre lá no início, só não sei como exprimi-las.

 

Nos seus filmes conseguimos identificar algumas imagens, sobre outras temos uma ideia, às vezes não é claro. Há muitos espaços em branco. Porquê?

O “Eût-elle été criminelle..." é sobre mulheres a quem é cortado o cabelo. É um filme sobre elas mas é também um filme sobre vingança, violência, há uma série de tópicos mais latos, mais abertos. Como eu não dou mais informação, é impossível saber-se por que estão a cortar-lhes o cabelo, ou quem são estas mulheres, exceto se se conhecer a história ou se se tiver feito pesquisa antes. Se eu der toda a informação, o contexto, a audiência vai pensar, "aconteceu há 60 anos e não sei vai repetir porque eles eram pessoas horríveis mas nós agora não somos". Evitar a informação traz o passado para o presente e dá à audiência espaço para criar a sua própria questão ou ponto de vista.

 

É esse o seu objetivo como artista?

Eu tento — obrigo, de certa forma — a audiência a confrontar-se com algumas questões. Por que é que este tipo de coisa aconteceu ou continua a acontecer? Por que é que a sociedade é tão violenta? São questões um bocado naïfs mas que todos partilhamos. Não temos escolha se não questionarmo-nos. É por isso que considero os meus filmes filmes de propaganda. Não no seu mau sentido da propaganda, que força as pessoas a verem uma coisa, mas no sentido de obrigar a audiência a questionar-se.

 

O que o toca, no passado e na contemporaneidade?

A destruição dos seres humanos. Há muitas caras nos meus filmes, muitas pessoas, que estão muito frágeis. Continuamos a viver numa sociedade violenta e injusta. Podíamos construir uma sociedade maravilhosa e nunca conseguimos, continuamos em guerra, a lutar, em sofrimento. Podíamos ser muito felizes mas preferimos destruir tudo, na nossa vida privada ou na sociedade.

 

Cláudia Sobral
Jornal i
25 abril 2016